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CriptoGoma Texto #3: Sobrevivendo Sem Espertofone

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Sobrevivendo Sem Espertofone

por Gaudi

Celular agarrado a mão

Em Maio do ano passado fui para São Paulo, onde iria participar da CryptoRave, baita evento sobre privacidade, liberdade, segurança e criptografia. Era primeiro de Maio, e fui dar um rolê pelo Vale do Anhangabaú, onde acontecia um daqueles shows promovidos pelas centrais sindicais. Marquei bobeira em um show da Sula Miranda e quando vi tinham levado meu celular. Lembro que minutos depois minha vida passou a girar em torno de bloquear o chip e pensar em um novo modelo de espertofone (ou smartphone, para os gringos), afinal como eu poderia viver sem um? Foram diversas estações de metrô até que eu pudesse bloquear o chip e algum tempo tentando em vão localizar o aparelho. No dia seguinte passei algumas horas pesquisando na internet, ou procurando na Santa Efigênia por um modelo que coubesse em meu orçamento.

Até que desisti. Comprei um celular que só faz/recebe ligação e SMS e resolvi tentar ver quanto tempo eu conseguiria viver sem um espertofone. Lá se vai um ano e eu sobrevivi. Então, resolvi contar um pouco desta experiência pessoal e o que tenho aprendido com ela.

Talvez um dos primeiros sinais de abstinência que senti foi o da “síndrome da mão inquieta”. Quando você tem um espertofone e é uma pessoa ansiosa como eu, ao menor sinal de tédio você vai lá e coloca a mão no bolso para pegar o celular. Uma fila no banco? celular. Uma conversa chata? celular. A cada tela desbloqueada dá aquela pequena liberação de dopamina necessária para você se sentir menos aflito. No pico do vício, o celular é a primeira e última coisa que você vê no dia, e muitas vezes até no banheiro você o leva (eca!).

O segundo sinal foi após as refeições. Era tão comum comer e logo em seguida dar aquela espiada no aparelhinho para correr o feed infinito de redes sociais, ou ver sumir aquela notificação que pulou na tela, dando uma sensação de dever cumprido. Quase um cigarro com café, já diriam os adeptos de outras drogas. Bom, talvez uma das cenas que mais passaram a me incomodar desde então foi a de presenciar pessoas que comem e mexem no celular ao mesmo tempo, com mesas inteiras de gente mexendo no celular em restaurantes por aí (lembra do banheiro?). Bom, talvez seja implicância de “ex-fumante”, mas o fato é que nunca mais consegui ver essas cenas como saudáveis novamente.

Aos poucos, os dias passam e a abstinência vai diminuindo. Aquela pressão de responder todo mundo de forma instantânea some, e lidar com o tempo se torna mais suave. Estar conectado a todo instante também deixa de ser uma necessidade. Os livros passaram a ser um ótimo passatempo para lidar com o tédio de filas, e de momentos de relaxamento após uma refeição por exemplo.

Às vezes dá vontade de tirar uma foto de algo e mandar para um amigo naquele instante, é verdade. Nem sempre caminhamos com uma câmera por aí, então um espertofone neste sentido é um baita de um quebra-galho. Escutar música é a mesma coisa. Uns 15 anos atrás nós lidávamos com isto com diferentes dispositivos (quem lembra dos tocadores de Mp3?), que foram todos unificados em um só aparelhinho, o espertofone. Que, diga-se de passagem, é bem maior e descarrega mais rápido.

Mas confesso que às vezes peço para alguém que tem um espertofone tirar uma foto e mandar para mim. Aliás, isso foi algo que mudou também. Você pode tentar contar com a ajuda de outras pessoas para resolver algumas coisas que faria você mesma. Nunca pedi tanta informação na rua para localizar endereços, e muitas vezes contei com a ajuda de alguém para solicitar transporte por exemplo, quando não tem táxi ou transporte coletivo por perto. Na maioria das vezes, eu não fiquei na mão! Fora que é divertido escutar os motoristas te chamando hora de Cláudia, João ou Fernando.

Aliás, as pessoas do seu entorno precisam estar bem cientes de que você não tem um espertofone, pois é quase como uma lei da natureza ter um. Então, é importante avisá-las que você não irá conseguir responder o zap no meio da rua, e que elas vão precisar estar prontas para atender uma ligação (sim, as aterrorizantes ligações) ou ler e responder um SMS. Elas desaprenderam estas funções básicas de um aparelho celular e precisam ser constantemente lembradas disto.

Você deve estar se perguntando sobre toda a questão tecnológica não é mesmo? Bom, uma das coisas que sempre me intrigaram foi a falta de transparência e autonomia no mundo dos espertofones. Acostumado com o mundo dos computadores pessoais, onde você pode instalar um Linux e ser feliz, vivendo com software livre e entendendo como as coisas funcionam, fico chocado em ver como é difícil entender o que afinal de contas é um sistema Android. Fora as parafernálias do Google que vêm embutidas neles e todas as alternativas que surgiram como o Replicante, CyanogemMod e o mais atual LineageOS, que sempre esbarram em limitações impostas de “fábrica” e complicações adicionais em fazer funcionar. Se ter um dispositivo desses “livre” da vigilância e quinquilharias dos fabricantes é difícil e arriscado pra quem entende de tecnologia, imagina para quem é leigo? Me parece um retrocesso de décadas estarmos presos a um punhado de corporações quando se trata da liberdade tecnológica que poderíamos ter se o mundo tivesse caminhado em outra direção. Portanto, não se trata aqui de uma crítica dos espertofones em si, mas da forma como a indústria se desenvolveu, limitando as nossas liberdades.

Em termos de privacidade, é preciso realçar que todo celular é um pequeno dispositivo de vigilância. Mesmo o meu, que só recebe e faz ligações pode ser localizado com uma precisão de poucos metros através da triangulação do sinal das antenas, e ligações e SMS não possuem criptografia alguma, podendo ser facilmente interceptadas. Com um esperto não é diferente, somando-se a isso ainda todas as outras camadas de software e componentes de hardware. Além de problemas como portas dos fundos (mecanismos ocultos para acesso não autorizado) vindas de fábrica, aplicativos maliciosos e permissões exageradas (aquele app de lanterna que precisa dos seus contatos é um exemplo). E agora em tempos de pandemia, estamos tendo uma pequena amostra de técnicas ainda mais avançadas de controle de massas, como o rastreamento de contatos, que permite identificar pessoas que tiveram contato com alguém contaminado pela Covid-19 (procure sobre contact tracing para saber mais).

Caminhamos para um mundo onde os espertofones são cada vez mais centrais nos mecanismos de vigilância e controle. Acompanhando tudo que tem se passado na China, já dá para ter um gostinho de como será este nada admirável mundo novo… Imagino que daqui um tempo será mais difícil se virar sem um, pois muitas vezes os apps só funcionam em sistemas para celular, por pura falta de investimento em desenvolver algo multi-dispositivo. Enfrentei problemas parecidos com bancos (ou fintéquis para ser mais chique), e whatsapp, aos quais resolvi (alguns parcialmente) simulando um espertofone em meu computador. Usei o software Genymotion, o qual vale um artigo completo detalhando o seu uso e problemas enfrentados. Entretanto, o que dizer de pessoas que precisam destes aparelhos para o seu ganha pão? No mundo da uberização em massa, o precariado é obrigado a se endividar para comprar aparelhos mais moderninhos, que suportem seus patrões-aplicativos.

Ou seja, embora este texto seja um convite para a reflexão através de uma experiência pessoal, me parece claro que a solução deve ser dada de uma perspectiva coletiva. Parecido com a mudança de hábitos alimentares, como diminuir o consumo de carne, precisamos estar atentas às tecnologias que consumimos no nosso dia a dia, mas uma andorinha só não faz verão. Como diria a zine “Queime seu celular”, produzida em 2010, a qual recomendo a leitura:

“O uso frenético do celular faz parte da construção do modelo de sociedade atual e de suas normas de comunicação. Se o problema é coletivo a solução tem que ser também. Será muitíssimo mais fácil e eficiente construir formas de se organizar e de se comunicar fora da dependência do celular se tua galera também o leva em consideração. Fala dele em tua cozinha. Deixa esse fanzine no banheiro dos teus colegas. Organiza debates em teu coletivo.”

Dedicado ao sujeito que roubou meu celular. Um forte abraço!