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CriptoGoma Texto #1: Software Livre e o Empoderamento de Comunidades

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Software Livre e o Emponderamento de Comunidades

por Iago Machado

Estamos acostumados a dicotomia software privado e software proprietário, poucas vezes nos preocupamos sobre a forma como nos relacionamos com a tecnologia. Alguns ainda acreditam na batalha homem versus tecnologia, e veem os computadores como máquinas burras e escravizadas, prontas para receber comandos. É preciso desconstruir essa ideia e repensar esse relacionamento, enxergando os computadores como extensões do corpo. Avatares que permitem a ocupação de um não lugar, virtual, o ciberespaço.

É fácil perceber a partir de uma rápida análise daquilo que conhecemos em termos de tecnologia informática até os dias de hoje, que a maioria dessas criações foram idealizadas por homens, héteros, em sua maioria brancos. Salvo Turing e algumas exceções muito importantes para a história da computação. Essas pessoas deram origem a uma “tecnologia branca”. São dispositivos que seguem determinados moldes, cores e designs padrões. Esses produtos carregam as percepções de mundo daquelas pessoas que os desenvolveu. Dificilmente alguém que desconhece o cotidiano de uma favela vai percebem o perigo que é para um jovem da periferia portar um dispositivos que de longe possa ser confundido como uma arma de fogo pela policia militar[2]. Pra evitar esse tipo de acidente, a favela também precisa estar preparada para desenvolver dispositivos que posam atuar em diferentes contextos. Porém, na maioria das comunidades falta apoio técnico e estruturas necessárias para que isso aconteça.

A inclusão digital durante muito tempo foi vista como simplesmente disponibilizar o acesso a Internet, quando na verdade é um processo de aprendizado constante. Na medida em que a tecnologia vai se desenvolvendo é necessário que a sociedade também desenvolva novas habilidades[3]. Mas num cenário de tamanha desigualdade social como no Brasil, como fica a situação das comunidades menos favorecidas que não conseguem acompanhar esse desenvolvimento?

Quando a Internet surgiu grande parte da comunidade anarquista dos primórdios da rede acreditou que ela serviria para empoderar as pessoas e fiscalizar governos. Mas os escândalos dos últimos anos envolvendo Julian Assange e o Wikileaks[4][5], Edward Snowden e a NSA[6][7], mais recentemente o Facebook[8], nos mostram justamente o contrário, que a tecnologia tem servido a governos e empresas para desenvolver ferramentas que controlem a sociedade. Esse controle se estabelece de várias formas, desde a influência em produtos que devemos comprar ou até mesmo quem será eleito nas próximas eleições. Além disso, a rede mundial de computadores também sofre com a centralização da informação naquilo que chamamos de grandes hubs, concentradores de links usados para enviar e transmitir mensagens. Quando acessamos uma informação na internet essa informação esta armazenada num computador em um lugar qualquer, esses hubs são usados para estabelecer uma rede de transmissão de pacotes, um caminho por onde a mensagem trafega da origem até o destino. Na Internet todos os caminhos que vão e vêm da América Latina passam pelos Estados Unidos.[9]

“O governo norte-americano tem violado sem nenhum escrúpulo as próprias leis para espionar seus cidadãos. Não existem leis contra espionar cidadãos estrangeiros. Todos os das, centenas de milhões de mensagens vindas de todo o continente latino-americano são devoradas por órgãos de espionagem norte-americanos e armazenadas para sempre em depósitos do tamanho de cidades.” (ASSANGE et al., 2013)

Os escândalos de espionagem nos mostram que devemos repensar a Internet desde sua estrutura física e a necessidade de se desenvolver novas redes, até mesmo novos hardwares. Os Estados Unidos ainda tentam subverter a democracia em vários país latino americanos como em Honduras, Venezuela, Equador e Paraguai. Juilan Assange, no prefácio para América Latina no livro Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet, nos alerta que o hardware criptografado protege os segredos de muito governos latino-americanos. Esses equipamentos embaralham mensagens, desembaralhando-as quando chegam a seu destino. Mas as mesmas empresas que produzem esses equipamentos tem vínculos estreitos com a comunidade de inteligência norte-americana que se valem dessa relação para espionar a Internet [10].

Na maioria das vezes não queremos acessar um computador que está nos Estados Unidos, estamos buscando determinado conteúdo ou informação que poderia estar armazenado numa rede comunitária dentro do nosso bairro. As redes livres surgem nesse contexto, como uma ferramenta para quebrar barreiras econômicas e geográficas levando um sinal de rádio ou até mesmo a Internet a lugares de difícil acesso. É uma oportunidade de construir uma intranet comunitária usando equipamentos de rádio como roteadores wifi [11].

O movimento das Redes Comunitárias surge da necessidade que grupos de pessoas sentem em criar uma infraestrutura de comunicação popular que seja aberta, descentralizada e gerida pelos seus próprios usuários. Uma pessoa pode transformar sozinha seu roteador Wi-Fi em uma central de compartilhamento de arquivos dentro da sua vizinhança. É uma forma estratégica de se utilizar a tecnologia para aproximar pessoas, garantir acesso a recursos como transferência de arquivos e o uso de aplicações de comunicação por voz e video[11]. Comunidades que dispõe de serviços como esse podem realizar pequisas, abaixo-assinados, consensos, votações ou agendar encontros físicos, sem necessariamente depender da Internet, mas podendo expandir a conectividade até áreas antes não atendidas.

A principal tecnologia utilizada atualmente para a implementação destas redes é a transmissão de dados sem fio através da família de protocolos 802.11 (wifi/wireless) em equipamentos como roteadores, antenas e outros, aliados ao uso de softwares livres[11]. Através dessas tecnologias podemos construir uma rede de dados veloz e de baixo custo, funcionando como um meio de comunicação livre. A interconexão entre diferentes dispositivos é feita de forma descentralizada, seguindo a topologia em malha, caracterizando uma rede mesh. Redes desse tipo são extremamente resilientes, onde a perda de um ponto não afeta os demais. Isso faz com que tais redes possam se expandir facilmente e conectar áreas remotas onde sequer a telefonia comum alcança, como é o caso das comunidades rurais.

O rádio inicialmente foi chamado de “sem fio”, pois surge como um substituto do telégrafo. Em 1916, rebeldes irlandeses usaram o “sem fio” para transmitir mensagens sendo essa a primeira utilização do que se conhece como rádio moderno. Bertolt Brecht já nos alertava sobre a importância de democratizar os meios de comunicação em sua Teoria do Rádio [12]. Ou seja, o rádio foi uma invenção tecnológica revolucionária que garantiu a comunicação e interação entre a comunidade durante um bom tempo, antes de tornar-se um aparelho de emissão controlado por monopólios e a serviço de seus interesses.

O movimento do software livre permite que possamos nos apropriar da tecnologia, de maneira a entender como ela funciona e a partir daí desenvolver novas ferramentas num processo de descolonização tecnológica. Mesmo que o usuário não esteja apto a desenvolver seus programas, ainda existe a possibilidade de usar uma tecnologias que foram construídas de maneira comunitária e que compartilhem seus códigos fonte.

A questão da apropriação tecnológica é abordada por Frantz Fanon, que entre outros assuntos também se debruçou sobre a tecnologia do rádio e o perigo que as transmissões radiofônicas representavam em tempos de guerra. Fanon vai analisar o uso das mídias no colonialismo francês e na luta anticolonial, tomando como estudo de caso a Guerra de Independência Argelina (1954 – 1962) para explicar as mudanças culturais ocorridas no processo revolucionário de luta pela independência na África. Como demonstra o excelente artigo escrito por Walter Lippold, o sistema colonial de saque era sustentado por um esquema de dominação cultural, manifestando-se sob o nome de “missão civilizadora” por parte dos franceses [13]. Ainda nas palavras do autor, o projeto cultural do colonizador é melhor definido como um processo de aniquilação da cultura local, dos conhecimentos que são desmerecidos, da destruição da memória coletiva e de esquecimento da sua história (LIPPOLD, 2017).

Comunidades indígenas e quilombolas geralmente encontram-se em lugares de difícil acesso e muitas vezes não despertam interesse dos provedores de acesso à internet em levar a conexão até esses lugares. No Brasil existem diferentes grupos que estão trabalhando para construir novas redes e instrumentalizar essas comunidades. Esses coletivos encaram a inclusão digital como um processo de aprendizado continuo e colaborativo, onde ao mesmo tempo que as pessoas estudam tecnologia, também aplicam seus conhecimentos no desenvolvimento de novas ferramentas. Tive a oportunidade de conhecer e participar de projetos e coletivos que desenvolvem redes livres nessas comunidades, o que segue são alguns relatos dessas vivências.

A Rede Mocambos é uma colaboração entre quilombos de todo o Brasil que destina-se a fornecer infraestrutura digital para compartilhamento e conservação do patrimônio cultural das sociedades de territórios remanescentes afro-brasileiras, urbanas ou remotas. Essa rede é responsável pelo desenvolvimento de um projeto de software livre chamado Baobáxia, uma rede livre que conecta comunidades ancestrais os povos originários.

“O conteúdo de cada mucúa pode ser sincronizado com o de outras mucúas, online ou offline através das mucúas móveis das pessoas que circulam nas comunidades. As memórias dessa forma se espalham de modo que cada nó pode potencialmente abrigar todo o conteúdo da rede.“ - mocambos.net/tambor/pt/baobaxia

Baobaxia funciona como um acervo compartilhado de memórias entre quilombos e aldeias espalhadas por todo o Brasil. Algumas múcuas encontram-se em lugares de difícil acesso, outras estão no meio de grandes centros urbanos, também existem múcuas móveis.

A Aldeia Pará, da etnia Pataxó, fica localizada no extremo sul da Bahia, distrito de Porto Seguro recebeu o II Festival Internacional de Tecnoxamanismo. O Tecnoxamanismo é uma rede internacional que reúne hackers e xamãs num debate que relaciona saberes ancestrais e a tecnologia. Durante a segunda edição do festival construirmos um Kigeme Cultural, um centro digital dentro da aldeia. O Kigeme conta com alguns computadores equipados com softwares livres para edição de vídeo, som e imagem e conexão com a Internet. Além do centro de cultura, durante o festival também vimos nascer a Rádio Aratu, e instalamos a mucúa Kadawe. Tanto a web rádio como a mucúa foram instaladas pelos Pataxós em oficinas que aconteceram durante o festival. Essas mídias vêm servindo como um canal para disseminar e preservar a cultura Pataxó com conteúdos criados dentro da aldeia e disponíveis na Internet para o resto do mundo.

Assim como a Rede Mocambos, a Coolab também é uma rede composta por diversas pessoas espalhadas pelo mundo, que trabalham não só nas áreas de tecnologia mas também em áreas da comunicação, pedagogia e sociologia.

“A CooLab – cooperativa laboratório de redes livres – é uma iniciativa que agrega diversas pessoas envolvidas com projetos de telecomunicação comunitária. Nosso objeto é fomentar as infraestruturas autônomas, através da capacitação técnica e ativação comunitária e, sempre que possível, financiar esses projetos.” - coolab.org

A Coolab [15] favorece o desenvolvimento de várias redes comunitárias, uma delas é o Portal Sem Porteiras. Localizado no Bairro dos Sousas, município de Monteiro Lobato, interior de São Paulo, a PSP não é um provedor de internet e sim uma rede comunitária preocupada em difundir conhecimento para que mais pessoas sejam capazes de gerir tecnicamente uma rede, repensando a passividade com a qual estamos habituados a transitar pelas tecnologias da informação e comunicação [16]. Roteadores e antenas de rádio transmitem um sinal de conexão que cobre as principais áreas do bairro, também existe um servidor cloud local que armazena e disponibiliza para acesso arquivos como fotos, textos, músicas e vídeos. O acesso a rede é gratuito e os custos com o provedor são divididos entre a comunidade. O sinal de telefone no bairro ainda é precário e antes da rede ser implementada não existia conexão com a Internet.

Todas essas iniciativas compartilham os mesmos princípios daqueles cypherpunks dos primórdios da Internet. Elas veem a rede mundial de computadores e a tecnologia como uma ferramenta capaz de empoderar comunidades através do conhecimento compartilhado. Iniciativas como essa só são possíveis graças a movimentos como o software livre e abrem portas para um processo de descolonização tecnológica através da apropriação. O software livre promove uma curva de aprendizado bem maior que o software proprietário graças as quatro liberdades fundamentais: que todo usuário pode usar o software com qualquer finalidade, a partir de seus códigos-fonte, realizar modificações, criando cópias e redistribuí-las.

A Internet permite que estabelecemos conexões de grandes distâncias, mas as redes comunitárias oferecem muitas vantagens em relação aos protocolos disponíveis para implementação de serviços sem depender de umas franquias da dados, usando equipamentos de baixo custo para seu funcionamento e aproveitando a segurança oferecida pelo software livre. Além disso, as redes comunitárias podem contornar o problema que as comunidades indígenas e quilombolas enfrentam com a falta de interesse dos provedores de acesso à Internet tem em ofertar o serviço em áreas rurais de difícil acesso, os altos custos cobrados pelos serviços muitas vezes impossibilitam a implementação de uma rede. Com a rede mesh implementada e um serviço local disponibilizando serviços a comunidade já pode ter acesso ao conteúdo ali armazenado, e mais tarde a rede pode ser conectada com a Internet a partir de qualquer um de seus pontos.

O software livre permite que os povos originários se apropriem cada vez mais da tecnologia, modificando suas relações com a mesma e que, a partir daí, possam desenvolver ferramentas que solucionem suas demandas sem depender das invenções do homem branco. Dessa forma, essas comunidades estão melhores preparadas para enfrentar o avanço da sociedade do conhecimento, preservando e disseminando saberes antigos ao mesmo tempo que constroem novas alternativas. As redes comunitárias servem como ferramenta de resistência, sendo usadas tanto para comunicação e organização dentro dos territórios como para a difusão do conteúdo gerado pelas comunidades, agora fica disponível também na Internet.

Referencial Teórico

[1] TAKAHASHI, Tadao (Org.). Sociedade da informação no Brasil: Livro Verde. Brasilia: Ministério da Ciência e Tecnologia, 2000.

[2] TINOCO, Dandara. O cineasta que a necessidade transformou em inventor: Estudante de engenharia desenvolve equipamentos de audiovisual de baixo custo especialmente para cineastas negros. 2017. Disponível em: https://projetocolabora.com.br/cidadania/o-inventor-nascido-da-necessidade/. Acesso em: 15 jun. 2018.

[3] BAUMGARTEN, Maíra (Org.). A Era do Conhecimento: Matrix ou Agora?. Porto Alegre/Brasilia: Universidade Ufrgs/ed; Unb, 2001.

[4] MARS, Amanda. Wikileaks revela o suposto método da CIA para ‘hackear’ telefones: Portal assegura que divulgará “o maior vazamento de dados de inteligência da história”. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/07/internacional/1488896251_547532.html. Acesso em: 16 jun. 2018.

[5] CANO, Rosa Jiménez. Assim a CIA espiona na Internet, segundo o Wikileaks: Em vazamento, portal revela as técnicas da agência, usadas por hackers e empresas de cibersegurança. 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/07/internacional/1488902840_337837.html. Acesso em: 16 jun. 2018.

[6] GELLMAN, Barton; SOLTANI, Ashkan. NSA tracking cellphone locations worldwide, Snowden documents show. 2013. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/world/national-security/nsa-tracking-cellphone-locations-worldwide-snowden-documents-show/2013/12/04/5492873a-5cf2-11e3-bc56-c6ca94801fac_story.html?noredirect=on&utm_term=.cbd2cc86b5fe. Acesso em: 16 jun. 2018.

[7] AGUILHAR, Ligia; RONCOLATO, Murilo. Snowden 1 Ano. 2014. Disponível em: http://infograficos.estadao.com.br/especiais/snowden/index.html. Acesso em: 16 jun. 2018.

[8] VALDEZ, Andrea. Everything You Need to Know About Facebook and Cambridge Analytica. 2018. Disponível em: https://www.wired.com/story/wired-facebook-cambridge-analytica-coverage/. Acesso em: 16 jun. 2018.

[9] Submarine Cable Map: The Submarine Cable Map is a free and regularly updated resource from TeleGeography.. Disponível em: https://www.submarinecablemap.com/#/country/brazil. Acesso em: 16 jun. 2018.

[10] ASSANGE, Julian et al. Cypherpunks: Liberdade e o Futuro da Internet. São Paulo: Boitempo, 2013.

[11] Redes Livres. Disponível em: http://www.redeslivres.org.br/. Acesso em: 18 jun. 2018.

[12] FREDERICO, Celso. Brecht e a “Teoria do rádio”. estudos avançados, v. 21, n. 60, p. 217-226, 2007.

[13] LIPPOLD, Walter. Cultura e a Luta Anticolonial no Magreb: estudos de Fanon sobre a Argélia. Revista Semana da África na UFRGS v.4, 2017. https://issuu.com/deds-ufrgs/docs/revista_montada-m__dia. Acesso em 8 jul. 2020

[14] http://tecnoxamanismo.com.br/blog/ . Acesso em 8 jul. 2020

[15] Coolab. https://www.coolab.org/ . Acesso em 8 jul. 2020

[16] Portal Sem Porteiras. https://portalsemporteiras.github.io/#quem_somos. Acesso em 8 jul. 2020