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MANIFESTO ENCRIPTA

As ferramentas por nós inventadas transformam profundamente nossa cultura, sociedade e o nosso próprio ser. Assim como a roda, o papel e a imprensa foram centrais no desenvolvimento da cultura e sociedade humana, nas últimas décadas vemos a internet assumir essa posição. Nesse sentido, ela é um palco de disputa entre duas tendências: uma centralizadora e autoritária, que nos vigia e nos molda para atendermos aos interesses de poderes econômicos e políticos, e outra libertadora, que desperta em nós uma multiplicidade – individual e coletiva – de existências e formas de organização com potencial de transformar a sociedade e superar as estruturas de poder vigentes.

No centro dessa disputa está o controle do software – programas e algoritmos que operam as máquinas ao nosso redor – bem como da ciência e tecnologia que permitem a construção dessas máquinas. Essa disputa pelo mundo virtual é uma disputa pelo mundo real. Essas máquinas computadoras modelam uma parcela crescente das nossas experiências: nossas relações interpessoais são mediadas pelos algoritmos do Facebook, nosso aprendizado e acesso a informação pelos do Google e até nossos caminhos decididos pelos códigos do Uber. Muitos destes softwares são proprietários, e não sabemos como funcionam e a que objetivos ocultos operam. Cada vez mais nossa vida esta à mercê de agentes praticamente invisíveis.

Relacionado a isto está o controle da informação em si. Há tecnologias que querem restringir nosso acesso a conteúdos digitais. Sob o pretexto de proteger os direitos dos “produtores de conteúdo”, estas tecnologias dificultam nosso acesso a bens culturais e científicos para proteger interesses econômicos de grandes corporações.

Tudo isto foi construído coletivamente e não deve ter donos: software, hardware, ciência e cultura devem ser livres. Somente tendo acesso aos códigos ocultos podemos ter certeza que eles operam como precisamos e que podemos modificá-los para construir o futuro que desejamos. Apenas tendo acesso irrestrito às produções culturais e científicas de nossos antepassados e contemporâneos podemos exercer nossas potencialidades de forma plena.

Mas saber exatamente como nossas máquinas funcionam não é suficiente, é preciso também que se comuniquem livremente. Boa parte da internet é controlada por algumas poucas empresas, corporações e governos, incluindo o brasileiro, que a todo momento tentam censurar e moldar o que passa pela rede para atender a seus projetos de poder. A gestão e a governança da internet devem, portanto, se apoiar em princípios que a protejam destas forças destrutivas. O tráfego deve ser neutro, todos os bits devem ser igualmente tratados independente de sua origem. Devemos impedir que acordos feitos entre seu provedor de acesso à internet e o Facebook privilegiem os serviços do Facebook e dificultem o seu acesso a Wikipédia, por exemplo. Ou que seu provedor ofereça acesso supostamente gratuito ao Whatsapp, mas que você tenha que pagar serviços de dados se quiser utilizar qualquer alternativa livre.

Nossas existências neste mundo virtual são também marcadas por outro fantasma: a vigilância constante e onipresente. Nossas confissões mais íntimas, segredos mais sórdidos, os sonhos mais insanos e os planos mais arriscados que temos podem estar expostos à mercê dos nossos opositores mais inescrupulosos. Estamos nus contra nossa vontade, expostos. A sensação de vigilância constante nos invade e temos medo, medo até mesmo de imaginar um futuro diferente, uma sociedade mais igualitária, um mundo mais justo. A privacidade, a seguranca e a criptografia forte devem ser direitos inalienáveis e devemos lutar diariamente para nos apoderarmos e disseminarmos entre nosso pares as ferramentas que as tornam possíveis, para que possamos voltar a sonhar em paz. Não se trata de paranoia ou mania de perseguição. Dia a dia coletam-se gigabytes de informações sobre nós, e estas informações serão usadas contra você, seja pela propaganda do YouTube, seja pelo seu entrevistador quando procurar um emprego ou, quem sabe, pelos agentes de um Estado de exceção.

Esta visão do mundo virtual que se apresenta pode ser assustadora. Mas por mais reais que sejam as perspectivas distópicas, são também palpáveis as utópicas. Na internet nasceram grupos e iniciativas inimagináveis antes dela. Existem enciclopédias livres construídas coletivamente, bibliotecas virtuais com amplos acervos, repositórios online com uma infinidade de artigos científicos. Existem comunidades vibrantes desenvolvendo programas e tecnologias livres e gratuitas. Há uma cultura de décadas voltada a experimentação e criatividade, cujas criações são livres (e utilizadas por nós cotidianamente, mesmo sem nos darmos conta).

A redução no custo de replicação da informação possibilitada pela internet e o nível crescente de automatização que a ciência e a tecnologia nos possibilitam hoje desafiam a maneira antiquada que usamos para atribuir valor econômico e dividir o trabalho em nossa sociedade. Podemos imaginar um mundo não tão distante onde o potencial criador da humanidade seja exercido plenamente e não existam mais vidas humanas tolhidas por disputas mesquinhas de poder.